Deus existe e é bom de mira. Ou não?
Ricardo Calil
À primeira vista, trata-se de um caso de fúria divina. Ou, pelo menos, de karma instantâneo. No vídeo viral acima, vê-se um carro sendo perseguido pela polícia e sendo fulminado por uma explosão. O título completa a equação: ''Homem que roubou igreja é atingido por raio''.
Se você acredita, pode-se chegar à conclusão de que 1) Deus existe; 2) tem boa mira; 3) é vingativo. Mas, se você duvida, vale a pena ver de novo. Aos 16 segundos, logo depois da explosão, surge um novo carro em cena. A não ser que Ele tenha promovido o milagre da multiplicação dos automóveis, há claramente algo de errado no vídeo.
Uma rápida olhada nos comentários e uma busca no Google deixam tudo claro: o viral é fake. Alguém pegou o vídeo documental abaixo, de um acidente de carro na Rússia, e o transformou em uma ficção. Para tanto, acrescentou o som de uma sirene, usou possivelmente um flash para simular um raio, cortou alguns frames e criou um título chamativo. A má notícia: não foi dessa vez que a existência de Deus foi comprovada por um vídeo viral. A boa: Ele não é cruel.
Em cartaz em São Paulo, há um filme que lida diretamente com a questão da manipulação da imagem: ''Enquanto Somos Jovens''. Na trama, um documentarista veterano (Ben Stiller) diverge das liberdades ficcionais que um jovem diretor (Adam Driver) toma com uma história de base real. O filme é sobre choque de gerações e sobre o arrivismo do mais novo – uma espécie de versão hipster de ''A Malvada'', o clássico com Bette Davis. Mas, em meio a isso, levanta questões importantes sobre o quanto pode-se usar a mentira para chegar à verdade, o ficcional para alavancar o documental.
Ainda sobre o mesmo tema, melhor ainda é o livro ''A Verdade de Cada Um'', uma antologia com textos de 32 mestres do documentário, organizada por Amir Labaki, fundador e diretor do festival É Tudo Verdade. No texto de João Moreira Salles, por exemplo, lembra-se que ''Nanook, o Esquimó'' (1922), considerado o primeiro documentário da história, há várias passagens encenadas. Por exemplo: o protagonista teve que reaprender a usar o arpão para fazer cenas de caça, porque já o havia substituído por armas de fogo.
Ao longo das páginas do livro, vários grandes documentaristas discutem quais são as fronteiras entre documentário e ficção. Todos eles concordariam que o sujeito que editou o vídeo do ''raio de Deus'' passou de todos os limites – mesmo trabalhando em nome do Pai.