Virais são um espelho dos primórdios do cinema
Ricardo Calil
Quando este blog foi criado há quase dois meses com a proposta de analisar virais como se fossem filmes, várias pessoas avisaram o Videota de que havia alguém estudando, há mais tempo e com mais propriedade, as relações entre os vídeos digitais e a história do cinema. Seu nome: Raimo Benedetti.
Videoartista, produtor e montador formado em cinema pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, Raimo criou um curso sobre o cinema de atrações – termo criado pelo teórico americano Tom Gunning para designar o chamado “primeiro cinema”, realizado entre 1895 e 1906.
Os filmes do cinema de atrações baseavam-se, segundo a descrição do curso, na “habilidade de maravilhar, espantar e atrair o espectador”. E muitos de seus atributos – narrativas curtas, inventividade, filmagens caseiras, efeitos especiais e formas não-narrativas – “encontram estreita relação com a produção audiviosual veiculada na internet”. Em outras palavras, os virais são um espelho do começo do cinema.
No curso (mais informações em https://vimeo.com/119278730), Raimo faz conexões, por exemplo, entre a obra do francês Georges Méliès (de “Viagem à Lua”, realizado em 1902) e os vídeos de Zach King, considerado o rei do Vine. Para entender melhor essas relações, o Videota bateu um papo com o videoartista.
O que caracteriza o “cinema de atrações”?
No começo do cinema, os realizadores queriam, mais do que contar uma história, mostrar uma história. Registrar algo com potencial de atrair o público, seja pela curiosidade, seja pelo espetáculo. Não havia ainda uma sintaxe de cinema, só havia o desejo de exibir uma curiosidade, fosse ela uma vista de uma cidade, um registro de uma dança, uma gague ou número circense. Estamos falando de um período em que não havia a sala de cinema, em que a exploração do cinema se dava mais pela novidade do que como uma forma de expressão autônoma. Por exemplo, foi um período em que praticamente não se utilizou o movimento de câmera, tudo deveria acontecer diante das lentes sem que ela se movesse em busca de captar uma imagem específica.
Que semelhanças entre o “cinema de atrações” e os vídeos virais você conseguiu identificar?
O potencial de atrair o espectador, que é a base do cinema de atrações, é o que caracteriza o viral hoje. Em meio a tanta oferta, você precisa fisgar a atenção do espectador de forma rápida. Os dois momentos históricos se assemelham na experimentação de formatos, na diversidade de gêneros, na ausência de uma forma hegemônica de expressão. As narrativas em geral são curtas, muitas delas feitas em um único take, sem uma tentativa de montagem. O que importa é registrar o que está diante da câmera, e não transformar o registro em uma matéria cinematográfica. A paródia, que é um gênero que o YouTube revalorizou, também foi muito praticada no começo do cinema. Os truques do Méliès foram refilmados por outros cineastas tantas vezes, foram se depurando de tal forma que viraram uma espécie de ''meme'' do cinema de atrações. E também havia a pirataria: muitas vezes simplesmente pegavam o filme original e trocavam apenas os créditos. Essa falta de regulação do mercado é comum aos dois momentos.
Em seu curso sobre o cinema de atrações, você faz comparações específicas entre filmes antigos e vídeos digitais?
Faço. Por exemplo, para mim o Zach King, que é conhecido como o rei do Vine (veja a compilação no vídeo acima), é um espécie de Méliès (compilação no vídeo abaixo). Ele faz filmes curtinhos, muito populares, baseados em truques visuais. Tem computação gráfica, mas também tem ilusões ópticas, como as paradas de substituição, que o Méliès já usava e que o King reproduz brilhantemente. Além dele, há os filmes de performance, que registram as habilidades extraordinárias. Eles caracterizaram os primeiros filmes e podem ser vistos hoje em inúmeras compilações, como as do ''people are awesome''. Até a moda das câmeras GoPro, que são penduradas em capacetes, carros, balões ou em uma nave espacial (como foi o caso do projeto Stratos), pode ser comparada com os filmes dos primórdios que exibiam imagens de uma câmera presa no trem, num barco etc., e que deram corpo a um gênero típico da época.
Vídeos de gatos e outros bichos são um fenômeno entre os virais. Havia algo parecido no cinema das atrações?
Claro! Na primeira sessão de cinema dos irmãos Lumière, em 28 de dezembro de 1895, não foi exibido apenas o famoso “A chegada do trem na estação de Ciotat”. O programa de filmes foi composto por aproximadamente 10 filmes. Entre eles, havia ''A pesca do peixe vermelho'', que exibia uma criança inocentemente tentando pegar um peixe com a mão dentro de um aquário. Mas depois vieram muitos outros, com muitos animais, a maioria registros de números circenses fazendo acrobacias, cachorro com terno e gravata andando nas duas patas… Os filmes de animais são um gênero específico no cinema de atrações.